As plataformas digitais ou eletrônicas e o transporte ilegal

O transporte coletivo de passageiros é um serviço público essencial à sociedade e um direito social. (CF, art. 6º). O Texto Constitucional atribuiu à União o serviço de transporte coletivo interestadual e internacional; aos Estados, o intermunicipal e aos Municípios, o urbano.

O serviço público pode ter sua prestação outorgada aos particulares, mediante concessão ou permissão.   Os sistemas de transporte público seguem imperativamente um regime de direito público que implica o atendimento aos princípios da regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas.

O transporte coletivo de passageiros classificado como serviço público (transporte público coletivo) se distingue daquele classificado como fretamento (transporte privado coletivo).   O fretamento é uma atividade econômica em sentido estrito, livre à iniciativa privada, mas sujeita à autorização e regulação estatal.

Logo, há uma premissa básica e inconteste a ser destacada: o fretamento não pode ser ofertado e prestado nos moldes do serviço público de transporte de passageiros.   O particular, autorizado a realizar fretamento, não pode ofertá-lo ao público em geral, com a cobrança individualizada de passagens.

O transporte ilegal de passageiros se caracteriza pela prestação do serviço sem outorga estatal, ou desrespeitando seus limites, no caso do serviço público e sem autorização no caso do fretamento.  Também e especialmente é considerado transporte ilegal a distorção do fretamento, ou seja, sua oferta e prestação nos moldes de transporte regular.

No caso da oferta de fretamento por plataformas digitais ou eletrônicas, a empresa Buser é um exemplo paradigmático. A empresa se apresenta como “uma plataforma de fretamento colaborativo que está transformando o mercado de viagens de ônibus, oferecendo uma nova alternativa de alta qualidade, segura e a preços justos; As viagens chegam ser até 60% mais baratas que as tradicionais e contam com seguro, motoristas profissionais, veículos inspecionados e monitorados por GPS, além de outros itens de segurança”.[1]

Desse modo, a Buser reconhece que sua atividade é de fretamento.   A reserva e venda de passagens é feita diretamente pela Buser, mas o transporte em si é realizado por terceiros.

Nos Termos de Uso e Política Privada constante de sua página eletrônica, afirma-se: “Você está ciente de que a BUSER não é uma empresa de transporte, não possui frota própria de veículos e tampouco é fornecedora de bens ou serviços no setor de transportes.”   Porém, analisando a descrição e a atividade praticada, nota-se que inexiste relação direta entre o passageiro e o prestador da atividade fim (transporte), mas somente entre ele e a Buser.

De outro lado, a Buser faz oferta de transporte coletivo aberto ao público, descaracterizando a atividade de fretamento.  Instaura-se assim concorrência desleal e ruinosa, uma vez que o regime de transporte público coletivo é planejado como um sistema composto tanto de ligações superavitárias quanto deficitárias.

Tal como realiza suas operações, a empresa Buser atua na atividade de transporte privado coletivo (fretamento); porém, fora dos limites legais e regulamentares.  Na prática, há oferta de transporte com atributos de serviço público, o que caracteriza transporte ilegal.

De se destacar a indevida equiparação entre as atividades da Buser e do Uber, uma vez que o transporte individual contratado por aplicativos ou plataformas digitais é legalmente classificado como atividade privada.[2]  O transporte individual por táxi é um serviço de utilidade pública.[3]   Portanto, a concorrência entre as atividades de transporte individual por aplicativos (Uber) e tradicional (táxi) foi estabelecida entre duas atividades privadas.

Diferentemente, o transporte coletivo de passageiros é um serviço público por expressa disposição constitucional.  O transporte coletivo privado ou fretamento é uma atividade subsidiária, que não pode concorrer com o serviço público de transporte dado ao regime de prestação que lhe é imposto.

Deve-se destacar que, ao contrário do quanto divulgado, o Supremo Tribunal Federal (STF) não reconheceu a legalidade da atividade da Buser.

Em 2019, a Associação Brasileira das Empresas de Transporte Terrestre de Passageiros – ABRATI ingressou com medida judicial denominada arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF n° 574) no STF, objetivando a declaração de inconstitucionalidade de decisões judiciais que autorizam o transporte coletivo de fretamento, comercializado por plataformas digitais, e o reconhecimento da omissão de entes públicos na fiscalização dessa atividade.

Há entendimento, porém, que a ADPF não deve ser processada na hipótese em que exista outro meio judicial de solução da controvérsia.

Assim, o relator da medida da ADPF n° 574, Min. Edson Fachin, em 17/12/2019, proferiu decisão processual, a qual negou seguimento à ação justamente por entender que as controvérsias mencionadas na inicial podem ser decididas por outros meios.   Foi seguido parecer da Procuradoria-Geral da República (PGR) que opinou “pela extinção do processo, sem julgamento de mérito”.

Portanto, o STF não analisou o mérito da questão, não emitiu qualquer juízo acerca da atividade da Buser Brasil Tecnologia Ltda.

Há recurso pendente da decisão do relator.  De tal modo, poderá tanto ser determinado o processamento da medida quanto mantida a extinção da ADPF.  Em qualquer das hipóteses, o STF não irá emitir decisão sobre a validade da atividade relativa às plataformas digitais, uma vez que a medida judicial ajuizada pela ABRATI não possui esse objetivo.

Convém destacar inclusive que a Buser sequer é parte na ADPF n° 574.  Interpretar que uma decisão, que não analisou o mérito e simplesmente deixou de dar seguimento a uma ação judicial, permite novos investimentos e funcionamento de plataformas digitais é alterar a verdade dos fatos.

O conteúdo e efeitos de decisões judiciais não podem ser deturpados.  O Poder Judiciário deve ser respeitado por exercer a função de aplicar a lei ao caso concreto, solucionando controvérsias e proporcionando segurança. Inadmissível que suas decisões, tendenciosamente lidas e divulgadas, sejam utilizadas como publicidade enganosa.

Aliás, a reiterada prática de transporte ilegal, reconhecido inclusive em decisões judiciais, levou o Ministério Público Federal a ajuizar ação civil pública em face da Buser (Proc. n° 5025429-20.2020.4.02.5001, 5ª Vara Federal Cível de Vitória/ES) fundada na “ilegalidade do modelo de prestação do serviço de transporte coletivo interestadual de passageiros oferecido pela BUSER BRASIL TECNOLOGIA LTDA., considerando a prestação ilícita do serviço de transporte coletivo regular”.

Na ação, o MPF pede, com abrangência nacional, que a referida empresa Buser “se abstenha de realizar a atividade ilegal em questão”.

Apesar de a inicial da ação mencionar o serviço interestadual, a mesma prática ilegal se verifica no serviço intermunicipal de transporte de passageiros.

Diante desse quadro, as críticas feitas às plataformas digitais ou eletrônicas que ofertam transporte de fretamento são fundadas, uma vez que existe reiterada prática de transporte ilegal e concorrência desleal com o serviço público regular.

A preservação dos sistemas de transporte público atende aos interesses da Administração Pública e dos usuários.  O transporte de passageiros é o serviço público por excelência.  Para grande parte da população, o transporte público é a única alternativa para utilização dos demais serviços colocados à disposição pelo Estado (escola, saúde, segurança etc.).

Portanto, o combate ao transporte ilegal é um dever das autoridades públicas.

Sindicato das Empresas de Transportes de Passageiros no Estado de São Paulo – SETPESP

[1] Disponível em: https://www.buser.com.br/, acesso em 06/11/2020.

[2] Lei de Mobilidade Urbana (Lei n° 12.233/2012), art. 4º, inc. X c/c art. 11-A.

[3] LMU, art. 12.