Artigo “Acordar para os negócios ilegais”, por Fernando Fleury

Não há fundamento jurídico para comparar Uber e Buser

* Fernando Fleury

Comparar hipóteses diferentes — semelhantes na aparência, mas nunca em sua essência — exige responsabilidade intelectual e compromisso com a verdade. Considero falhas e sem fundamentações jurídicas as comparações entre o transporte coletivo clandestino Buser e o individual Uber.

O Uber é um recurso inovador, que facilitou a mobilidade para o transporte individual das grandes cidades — e foi bem definido pelo STF no julgamento da ADPF 449: o serviço de táxi, ou similares, são classificados como serviços de utilidade pública. Diferem essas atividades dos serviços públicos de caráter essencial, assim definidos pela Constituição, como é o caso dos serviços públicos de transporte rodoviário coletivo de passageiros: urbano, intermunicipal, interestadual e internacional.

Esses modais dependem de regular outorga estatal e, obrigatoriamente regulados, têm de observar características essenciais à prestação de um serviço público, como regularidade, continuidade e universalidade. Definitivamente, não se trata de atividade privada econômica que o “mercado” possa regular.

Tanto não é verdade que já existem diversas decisões proibindo a atuação ilegal do Buser ou, quando menos, obrigando a empresa a cumprir a lei, algo que vem desrespeitando sistematicamente. Decisões como as recentemente proferidas pelo TRF da 4ª Região, pela Justiça Federal no Distrito Federal, na Bahia, no Rio de Janeiro, em Santa Catarina e no Paraná foram extremamente claras não somente quanto à ilegalidade da atividade do Buser, mas também sobre escancarado desrespeito às decisões do Poder Judiciário.

As diversas e constantes apreensões pelos fiscais da ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) dos veículos contratados (e ilegalmente caracterizados) pela empresa Buser acontecem em todo o território nacional. Revelam a irresponsabilidade e o desprezo às leis, às decisões e regulações vigentes.

Para defender interesses econômicos, há quem lance mão de recursos retóricos, apenas como um verniz de sofisticação — quando, na verdade, a falsa equiparação de situações distintas não passa de pueril argumentação. Nenhuma estética, mesmo elaborada, sobrevive na defesa do que é injusto e ilegal.

Nesse cenário, vale ilustrar o que Clayton Christensen (1952-2020), economista americano, professor da Harvard Business School, traçou sobre a inovação disruptiva, aprimorada em seu livro “O dilema da inovação”, em 1997. Não consta em suas páginas o ensinamento de que a disruptura transgrida as leis ou que seja necessário um dumping com recursos de terceiros, para provar que as empresa seja inovadora.

O economista alemão Theodore Levitt (1925-2006), também de Harvard, é esclarecedor em suas obras “A imaginação de marketing” e na “Miopia em marketing”. Neste artigo, Levitt descreve o fenômeno primário, que é tendência — de grandes e pequenas empresas — em processo de crescimento, o erro estratégico de desfocar dos seus clientes e focar no seu produto.

O Buser faz exatamente isso. Seu produto é ruim porque é clandestino e ilegal. Seus clientes são como cobaias para um pretenso desejo de crescimento a todo custo. Isto quando não são, desrespeitosamente e irresponsavelmente, abandonados nas estradas do país – quando seus veículos piratas são pegos em flagrante ilegalidade.

No tempo de Levitt ainda não havia as práticas utilizadas por essa empresa: fake news, marketing de guerrilha e supostos influencers desinformados, dispostos a multiplicar a ignorância.

Por fim, nesse contexto, até o economista Joseph Schumpeter (1883-1950) é citado de forma aberrante. De acordo com o deselegante artigo “Dormindo no ponto”, publicado no site do GLOBO quinta-feira, 15 de outubro, numa tentativa de ironia, escreve que Schumpeter “nunca esteve tão vivo”, sem ao menos o oferecer o direito de defesa em citação tão descabida. Pois bem, sinto-me na obrigação ética de fazê-lo.

Para Schumpeter, um dos pontos básicos para uma atividade ser inovadora é o devido equilíbrio econômico e vantagem competitiva. O Buser e seus “motoristas” contratados disfarçam que estariam transportando pessoas no regime de fretamento, mas não cumprem o regime jurídico do transporte por fretamento, operando clandestinamente o serviço público regular. Fogem da obrigação de transportar idosos, deficientes e jovens carentes, e ainda recolhem de forma criativa — e sem simetria com os prestadores do serviço público — os impostos devidos, praticam dumping para bancar uma possível compra de participação no mercado rodoviário de passageiros.

Tudo isso de modo a desestruturar a prestação do serviço público essencial, onde atuam mais de 600 empresas alocadas no sistema interestadual e nos intermunicipais — e assim dominar, com exclusividade, um canal de vendas de passagens rodoviárias. Trata-se de um empreendimento sem responsabilidade social e econômica, que investe recursos captados de fundos de investimentos que, aliás, podem não estar satisfeitos com seus desconhecidos balanços econômicos.

* Fernando Fleury é professor de Economia e consultor da Associação Brasileira das Empresas de Transporte Terrestre de Passageiros.


Fonte: O Globo